
Um dia você vai visitar um familiar preso e a polícia indevidamente inclui sua foto em um álbum para reconhecimento fotográfico, noutro você é preso preventivamente por um crime de roubo que não cometeu. Não é uma hipótese mas um caso real, dentre os muitos em que pessoas – principalmente pobres e negras – são presas cautelarmente com base exclusivamente no reconhecimento fotográfico. Já teve até caso de prisão com base em reconhecimento fotográfico por WhatsApp!
Tal reconhecimento é ilícito, pois desrespeita o procedimento previsto no artigo 226 do Código de Processo Penal e dá azo ao falso reconhecimento que ocorre por induzimento da vítima ou testemunha. Algumas formas de lutar contra essas injustiças é impetrar Habbeas Corpus, na seara criminal, e propor ação indenizatória para responsabilização cível do Estado.
Trago aqui a ementa de um acórdão que condenou o Estado do Rio de Janeiro a pagar R$50.000,00 de indenização por danos morais e 2 salários-mínimos a título de danos materiais a pessoa que ficou presa 59 dias em virtude de reconhecimento fotográfico abusivo e irregular:
APELAÇÃO CÍVEL – DIREITO ADMINISTRATIVO – AÇÃO INDENIZATÓRIA – RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO – PRISÃO CAUTELAR BASEADA EXCLUSIVAMENTE EM RECONHECIMENTO FOTOGRÁFICO – DESRESPEITO AO PROCEDIMENTO PREVISTO NO ARTIGO 226 DO CPP – RÉU ABSOLVIDO POR RETRATAÇÃO DA VÍTIMA, ALEGANDO ERRO NO RECONHECIMENTO – PRISÃO PREVENTIVA QUE DUROU CINQUENTA E NOVE DIAS – FOTOGRAFIA INDEVIDAMENTE INSERIDA EM ÁLBUM POLICIAL – DANO MORAL CONFIGURADO – SENTENÇA DE IMPROCEDÊNCIA QUE DEVE SER REFORMADA.
A questão a ser discutida antecede o devido processo criminal sofrido pelo autor na condição de réu acusado por roubo, eis que a causa maior de todos os desdobramentos fáticos foi a abusiva e irregular inclusão de um cidadão sem qualquer apontamento criminal em álbum de fotografia em unidade policial, simplesmente porque fora visitar um parente preso. Excluída a foto ilegalmente colecionada na delegacia, não haveria qualquer fundamento para a prisão. Portanto, ato ilegal que não poderia gerar efeitos, anulando-se suas consequências. Ademais, a prisão preventiva se baseou em prova frágil e equivocada, apenas no depoimento de uma das vítimas, em reconhecimento fotográfico. Trata-se de conduta perigosa e inconsequente, não condizente com o esmero e o preparo técnico da polícia investigativa, que procurou solucionar o evento criminoso de maneira absurdamente simplificada. Prisão decretada em desconformidade com o entendimento do STJ de que a prisão preventiva com base somente no reconhecimento fotográfico não prestigia a observância cogente do artigo 226 do Código de Processo Penal. Fundamento do artigo 37, § 6º da CF acerca da responsabilidade do Estado de natureza objetiva, não se exigindo a ilicitude da conduta, pois, mesmo lícita, ao se mostrar causadora de dano, também enseja o dever reparatório/indenizatório. Há erro na colheita da prova em sede inquisitorial, e evidente simplificação na atuação do Poder Público, quando da decretação de medida tão grave que é a privação da liberdade do indivíduo. Tais erros e equívocos estão intimamente ligados à formação da prova e à formação do convencimento do magistrado, não podendo, nem devendo o autor/apelante suportar o ônus de decisões evidentemente equivocadas. Há evidente má formação do inquérito policial que induziu o Ministério Público e o Juízo ao erro de decretar a prisão cautelar baseada num único e frágil elemento que, diga-se, não se sabia naquele momento abusivo e irregular. O segundo réu, vítima do crime de roubo que fez o reconhecimento da fotografia em sede policial, não contribuiu para a inserção indevida da foto do autor no álbum criminal, não podendo ser responsabilizado, posto que exerceu regularmente seu direito, sem nenhum indício de má-fé. Autor/apelante que, em decorrência da prisão, deixou de exercer sua atividade laborativa regular pelo período em que esteve recluso, restando demonstrados efetivos danos materiais sofridos, estimados na proporção de dois salários mínimos. Dano moral que resulta do evidente sofrimento decorrente do encarceramento injusto pelo período de cinquenta e nove dias. Verba arbitrada em R$50.000,00 (cinquenta mil reais), consoante jurisprudência desta Corte. Juros de mora a contar da citação, de acordo com o índice da caderneta de poupança, nos termos do art. 1º-F, da Lei nº 9.494/97, com redação dada pela Lei nº 11.960/2009 e correção monetária pelo IPCA-E, a partir da condenação em relação ao dano moral e do desembolso quanto ao prejuízo material. Condenação do Estado nas despesas processuais e honorários advocatícios, fixados em 10% sobre o valor da condenação. Recurso conhecido e parcialmente provido. (0224531-37.2018.8.19.0001 – Apelação. Des(a). Maria Augusta Vaz Monteiro De Figueiredo – Julgamento: 09/03/2022 – Quarta Câmara Cível)
Legislação:
- Art. 226 do Decreto-Lei nº 3.689 de 1941 (CPP) que disciplina o reconhecimento de pessoas
- Projeto de Lei nº 676, de 2021 que dispões sobre o reconhecimento fotográfico de pessoas
Jurisprudência:
- HC 631.706/RJ, HC 712.781/RJ e RHC 206.846/SP julgados pelo STJ
- Apelação nº 0224531-37.2018.8.19.0001 julgada pelo TJRJ